O novo centro autoritário do Brasil
Além de extrema-esquerda e extrema-direita, hoje temos os intolerantes e autoritários do extremo-centro
Não é estranho e contra-intuitivo quando você parte uma fruta e ela está-se apodrecendo pelo centro? O normal é a coisa estragar pelos extremos, como o pavio queima pela ponta, a floresta se desmata pela fronteira, doenças adentram pela epiderme; se sistemas encontram ameaças sobretudo no ambiente externo, é natural que as primeiras camadas afetadas sejam as exteriores, as fronteiriças, as extremas. Enfim, o apodrecimento é centrípeto: o esperado é que ocorra de fora para dentro.
O mesmo raciocínio eu aplicava à política; que os extremistas apodrecem a democracia, isso já sabemos, é o esperado. Lembro de, desde a adolescência, andar pela Cinelândia (no centro do Rio) e sempre ver uns manifestantes estacionários de direita com cartazes pedindo “intervenção militar” e com palavras de ordem nacionalistas como “Halloween é o ca**lho”, dentre outras. Lembro, ainda, de conversar com amigos universitários da extrema-esquerda, para os quais o meu voto no PT era considerado um delírio burguês; para eles, a democracia era apenas um obstáculo a ser derrubado em seus sonhos revolucionários.
Podemos lamentar a existência do extremismo, mas é um fato da realidade; há pessoas que, muitas vezes por temperamento, tornam-se dependentes de bandeiras utópicas e de soluções absolutas e inegociáveis para os problemas que julgam emergentes. Isso é perigosíssimo, claro; como disse Robert Conquest no prefácio de seu Reflections on a Ravaged Century, “a responsabilidade principal pelos desastres do século [XX] reside não tanto nos problemas, mas nas soluções”. Ou seja: para todo e qualquer problema da democracia existe sempre uma solução mais autoritária, mais violenta e mais sanguinária.
O que nos salva dos extremismos é a modulação, que ocorre não apenas pela competição mútua entre os extremos, mas também por um trabalho de moderação e proteção de determinados princípios por aqueles que não se encontram nos extremos, ou seja, por aqueles estão mais perto do centro.
A grande virtude do centro (para a saúde da democracia) não se encontra no fato de ele ser, muitas vezes, um pot-pourri de ideias ou uma média ideológica entre a esquerda e a direita; a grande virtude dos não-extremistas reside no seu compromisso com os meios democráticos. Não importa se eu vou ganhar, não importa se o mundo seguirá os meus anseios, não importa se o político que odeio vencerá: o funcionamento do jogo deve ser preservado. A democracia é um sistema de rotatividade do poder (por meio da disputa retórica) para, assim, evitar-se o risco de concentração de poder e, portanto, de tirania; se além disso der para aprovar algumas políticas públicas de que gosto, ótimo; mas não é esse a razão que dá (ou deveria dar) legitimidade ao sistema.
Eu sempre imaginei que o extremismo de meios (o apoio ao autoritarismo como um meio) fosse decorrência do extremismo de fins ideológicos: o sujeito carrega uma visão de mundo tão extrema, mas tão extrema, que o apoio popular torna-se prescindível e sua implementação torna-se impossível em meio democrático. Aos seus olhos intolerantes, o método autoritário torna-se assim meio único - e legítimo - para a realização dos fins que julga tão nobres.
Até que eu comecei a perceber alguns posicionamentos estranhos de diversos “moderados” dos dias de hoje; e vi que a coisa não era bem assim. Notei que supostos moderados vibram com o macarthismo macunaímico da CPI, com toda a sua intimidação à imprensa e as quebras de sigilo; aplaudem iniciativas ilegais como inquéritos e prisões do STF; defendem regulação e proibição da liberdade de expressão com base em ideias estapafúrdias como “fake news” (que nem crime é); pedem a censura e o silenciamento, inclusive a derrubada de lives de um presidente eleito e de seus apoiadores; querem impedir manifestações apenas pela mera declaração de que são “antidemocráticas” e demais factóides do tipo; xingam e chama de genocidas pessoas que simplesmente lembram que têm direitos constitucionais em meio a decretos de lockdown etc; defendem expurgos de membros de partido (como do Novo); e assim por diante.
Daí pensei: opa! Tem um personagem diferente aí. Esse não é o centro normal; é uma alt-centro, um extremo-centro, é algo novo. Esses extremistas autoritários de centro não são de extrema-esquerda nem de extrema-direita. O extremista de centro é crítico da direita, claro, em especial do governo atual. Mas ele também é crítico da esquerda, do socialismo, das ditaduras de esquerda pelo mundo. Ele não é um “isentão”, alguém que se finge de centro para, a partir de uma posição supostamente equidistante, poder contar com o poder simbólico do centrismo enquanto defende a esquerda; não é isso.
Por que isso acontece, é difícil de saber, mas tenho algumas hipóteses. Além das tradicionais - como o antibolsonarismo psicótico, pressão dos pares etc -, imagino que haja aqui um desespero com a decadência das instituições nesta Era da Contestação em que vivemos: nenhuma instituição pode mais contar com o distanciamento esplêndido e litúrgico para se evadir da crítica e da prestação de contas; dos políticos à ciência, da mídia ao judiciário, todos se tornaram potenciais alvo das críticas do público. Vivemos uma era de comunicação horizontal, de batalha retórica em campo aberto, de muita cacofonia; e isso traz muita ansiedade, histeria, desespero quanto ao futuro, quanto à estrutura da ordem e da autoridade que serão produzidas nesse ambiente.
Num cenário como esse, é natural que haja mais tolerância com ameaças conhecidas e estabelecidas; por exemplo, o comunismo é um ataque explícito à democracia: não existe comunismo com democracia, é uma contradição em termos, e a própria existência de um movimento comunista deveria ser vista, pelos grandes preocupadões com a democracia, como a ameaça antidemocrática que realmente é. Mas o centrista tende a ter mais tolerância com o comunista porque ele o conhece há mais tempo, já entendeu e já domesticou a ameaça em sua cognição. O que o centrista combate, aquilo de que tem medo, é muito mais do desconhecido do que do ameaçador (ou melhor, o desconhecido torna-se mais ameaçador precisamente porque desconhecido). Então o comunista, os autoritárias de esquerda, essa ameaça de sempre, isso aí tudo está Ok; mas a nova direita, essa desconhecida - assim como uma doença nova -, é melhor contê-la enquanto há tempo: é lockdown, tapume, e cancelamento neles. Nesse cenário, a direita somente seria aceita se reencarnasse Churchill.
Diante disso, não é natural que alguém de direita sinta-se perseguido? Por que os que atacam a democracia pela esquerda não são presos? Nem censurados ou bloqueados? Não é natural que ele sinta que as instituições, que os moduladores e moderados, simplesmente não toleram a sua participação? Que a “democracia” que tanto defendem por aí está sendo manipulada para que a sua visão de direita não possa nunca vencer? Você pode discordar desse diagnóstico; mas não dá para descartá-lo no juízo de admissibilidade.
O centro autoritário age como aquele que, com medo, desesperado, começa a fazer besteiras, ferindo aos outros e a si próprio. Ainda há tempo para desembarcar desse vale-tudo, desse ataque à democracia pelo próprio centro, desse extremo-centrismo; e voltar a praticar o papel modulador de sempre: exija-se que a regra do jogo vale para todos, ou alguns vão começar a achar que o jogo é manipulado e não vale a pena ser jogado - o que será ruim para todos nós.