Bolsonaro, o Álibi-Geral da República
O maniqueísmo fanático da vanguarda pseudo-escolarizada tem acobertado e reabilitado a indigência política e institucional brasileira
Soltem os presos de Arkham: soltem o Coringa, o Pinguim, o Duas-Caras; soltem todos os vilões, porque o Diabo está à solta. Se o Diabo existe, tudo é permitido; abram as portas das prisões, chancelem toda e qualquer oposição, destruam todo e qualquer freio e contrapeso institucional: é preciso combater o Mal encarnado, é preciso defender a democracia. Nem que para isso, claro, nós precisemos acabar com ela antes.
Mesmo que fosse o Diabo encarnado, o método é perigoso: vale adotar medidas inconstitucionais? Vale prender jornalistas que não estão do “lado certo” da história? Esse é o problema: porque depois que Gotham tiver expulsado o Demônio, o que você fará com os bandidos que soltou? Com os freios e contrapesos atrofiados e desregulados? A vanguarda escolarizada brasileira esqueceu (nunca soube) que existem vitórias que são pírricas.
Mas realmente, se fosse o Diabo encarnado em pessoa, o atual maniqueísmo fanático da vanguarda pseudo-escolarizada até faria algum sentido; talvez até eu concordasse. Ou melhor, não só concordaria, como até cantaria “chame o ladrão” junto com Chico e diria: melhor o Coringa mesmo. Se o Diabo encontra-se à espreita, muita coisa passa a se tornar justificável mesmo. Churchill não se aliou a Stálin para combater Hitler?
Só que: acorda, amor! (Aliás, esse é o título da música de Chico); ou ao menos ative no cérebro um app chamado “senso de proporção”. E se não for o Diabo? E mais: e se muita gente - por exemplo, jornalistas, artistas, youtubers, movimentos políticos e demais escolarizados descolados urbanos - usa a narrativa do Diabo encarnado como pretexto, como uma descrição hiperbólica do mundo para que, no comparativo, as suas ações e as suas visões de mundo pareçam mais moderadas e atrativas? E se o Diabo encarnado tornou-se um supremo pretexto, uma primeira-desculpa, um álibi-geral, que serve para expiar a culpa e reabilitar todo e qualquer indigente e irrelevante, desde que ele se mostre do “lado certo” da luta?
Deixem-me matar em paz, o foco é no Diabo;
Deixem-me roubar em paz, o foco é no Diabo;
Deixem-me inventar inquérito, prender jornalista (de direita, claro!), soltar bandido; pois o foco é no Diabo;
Esqueçam o que eu fiz no passado, reabilitem-me, expiem-me a culpa, reverenciem-me como herói, pois estou com vocês na luta contra o Diabo!
Gente, eu roubei bilhões das estatais, eu roubei dinheiro de hospital de campanha, eu mandei você ficar em casa e só procurar o médico com falta de ar, eu inventei lockdown sem embasamento científico (aquele mesmo embasamento que exijo para, por exemplo, aceitar o tratamento precoce), eu defendo ditaduras, eu quero regular “fake news”, eu quero regular “discurso de ódio”, eu inventei inquérito ilegal, eu prendi jornalista (mas de direita!), eu prendi deputado (mas de direita!), eu pedi vacina para os esses-lentíssimos; eu faço o que quiser neste país porque, afinal: eu sou contra o Bolsonaro!
Seguem-se aplausos efusivos. O sujeito é contra o Bolsonaro; está inocentado, por meio de habeas omnipotentiam com base no reductio ad bolsonarum. E na sentença vem até uma ordem para o sujeito ir ao Roda Viva (ordem essa desnecessária, claro).
E assim Ciro Gomes virou moderado, Lula tornou-se estadista, Rodrigo Maia é incensado como Churchill, Renan Calheiros é líder nacional, Átila virou intelectual respeitado (aquele mesmo que defende o “autoritarismo necessário”), jornalistas os mais medíocres viraram heróis da resistência, Mandetta virou um gênio da gestão; mandar ficar em casa em vez de orientar a procurar um médico é “genocídio” também? E a ideia de conversar com bandido para implementar as medidas contra a pandemia? Que beleza de ideia, hein? Você não era contra “miliciano”? Ou se for para antagonizar Bolsonaro, aí pode? É “milícia do Bem” que se chama, ou lá no Tablado tem outro nome?
(Deixa eu desligar a ironia (momentaneamente) e aproveitar o exemplo do Mandetta e explicar como não cair no maniqueísmo: eu não estou querendo crucificar o Mandetta; estávamos no início da pandemia e ele agiu com a informação que ele julgava a melhor; beleza. Estou apenas comprovando que ele não foi promovido a herói por causa de suas decisões, até porque, conforme verificado, elas não foram exatamente brilhantes; ele foi promovido a herói simplesmente porque sua apresentação pública poderia ser instrumentalizada como narrativa de contraponto a Bolsonaro. E, no filme do fascismo utópico que a vanguarda queria promover, ele cumpriu bem o teatro que lhe foi designado no roteiro. Para o vanguardista, nem interessa se Mandetta salvou ou matou mais do que deveria; interessa apenas a instrumentalização que dele se pode fazer na cruzada fanática do antibolsonarismo psicótico. E por fim, para comprovar meu não-maniqueísmo: o erro de Mandetta é o erro de Bolsonaro também, afinal foi ele quem o nomeou ministro. Quem faz a ginástica mental do maniqueísmo aqui é você, e não eu).
Não há nada de errado em ser oposição; muito pelo contrário, é bom que ela sempre exista. Sou a favor da liberdade quase-absoluta de expressão; defendo até a existência de partidos comunistas (cuja existência é praticamente sinônimo de apologia a ditadura e revolução). Eu só penso que a regra tem de valer para os dois lados (essa coisa de a regra valer para os dois lados é difícil de ser apreendida pelo vanguardista, que em geral se julga melhor do que “o povão” mesmo; em especial em tempos de fascismo platônico).
O problema não é a oposição; o problema é a histeria, o histrionismo, o completo descontrole que cria uma imagem de Mal Infinito contra o qual todas as instituições - da imprensa ao STF - recebem um passe-livre para violentar suas próprias tradições, seus próprios freios e contrapesos, em nome da luta pelo Bem. Quem tem acabado com a credibilidade da imprensa? E do STF? Não é Bolsonaro. Gotham não estará limpa depois disso; ela continuará suja, só que agora sem a mesma confiança institucional geral (por auto-sabotagem dessas próprias instituições, influenciadas pela profecia autorrealizável do autoritarismo). E nós precisamos de uma boa imprensa, de um bom STF e das demais instituições; eu não quero o seu fim, eu quero é que eles desempenhem o seu trabalho à altura de sua responsabilidade.
Seres humanos desesperados fazem besteiras, normalmente besteiras perigosas (para si e para os demais). O antibolsonarismo psicótico é a narrativa de um apocalipse desesperador que as nossas instituições não teriam maturidade para conter em seu funcionamento normal; seria preciso, assim, romper com normas institucionais, inclusive com garantias democráticas (como a liberdade de expressão), para fazer frente a isso; não à toa, no julgamento do inquérito ilegal do STF, um dos ministros afirmou que não se pode deixar que “formalidades” entrem no caminho do que é preciso fazer (imagine se as Forças Armadas pensassem assim? Os vanguardistas achariam bonito? De minha parte: estão e estariam todos errados. Arkham tem de estar fechado, e ou o Brasil é saneado dentro da lei, ou não haverá o que sanear). Daí porque o antibolsonarismo psicótico seja tão perigoso: ele é uma interpretação histérica que chancela uma série de ações que autorrealizam a profecia do caos e do autoritarismo.
Veja que até ontem os escolarizados engajados, os “iluministas”, o pessoal “moderado”, o pessoal do “centrismo”, da “terceira via”, do “extremos não”, dizia que queria uma nova política, sem polarização, sem “populismo”, sem extremos; mas foi só o STF anular condenações de Lula que o pessoal foi logo declarando o seu voto em eventual segundo turno do ano que vem; que tenacidade de princípios, não? Quanta dedicação e determinação em construir uma alternativa! Se essa volubilidade não te faz acender o alerta sobre aonde o antibolsonarismo psicótico tem te levado, é preciso repetir: acorda, amor!
E sabem o que é mais impressionante? Não é pelos extremistas que a democracia tem sofrido. Não é pelos doidos da extrema esquerda e da extrema direita de sempre.
A democracia tem sofrido por causa dos tais “moderados”, dos “bolsonaro aff”, dos saudosos da liturgia, do pessoal “de Bem”, dos bolchehipsters, dos macunaímas de tweed, dos sofisticados que, em seu narcisismo, pensam-se acima das instituições do país e acreditam que vale tudo para combater o (que acreditam ser o) Mal (leia-se: o governo eleito).
Esse é o perigo do antibolsonarismo psicótico; não é ser oposição, o que é sempre bom e bem-vindo. O perigo é que, em seu maniqueísmo fanático, ele confere álibi-geral a toda sorte de vilões e oportunistas que, assim, podem agir desimpedidos contra as nossas instituições.