Concordemos ou não com as suas razões, muitos brasileiros encontram-se perplexos com a conjuntura política do país. (De minha parte, eu ficaria perplexo o dia em que as coisas fluírem bem; como pode, o governo brasileiro funcionando bem? Como pude estar tão errado em minhas previsões? Mas enfim, cada um tem a ressaca com as ilusões que engoliu).
Para aplacar a perplexidade, convém encontrar motivos e explicações. Se na psicanálise o explicar das causas contribui para o reduzir das neuroses (se é que o faz mesmo), na análise política nacional tem-se dado o efeito inverso: os mais neuróticos entre nós parecem ser exatamente aqueles que passam o dia tentando explicar as suas perplexidades com a democracia.
Os perplexos atribuem sua condição a fenômenos como “polarização”, “retrocesso”, “morte da democracia”, “populismo” e, claro – como não poderia deixar de ser – ao “fascismo” de sempre. E por assim diagnosticarem a situação do país, arrogam-se a posição de defensores das instituições: democracia! Imprensa! Ciência!
Tudo caminhava mais ou menos bem na rota cênica do Progresso até que surgiu esse pessoal, essa nova direita, para atrapalhar tudo. Só que tem um problema: e o povo, faz o quê com ele? Porque ele votou, e aí complica a tese; como defender a democracia e desmerecer o seu resultado ao mesmo tempo? Essa é a pergunta que tira o sono de qualquer vanguardista que se preze.
Mas não é nada, claro, que uma boa dialética não resolva: podemos dizer que o povo é alienado, reaça, fascista, manipulado pelo zapzap e fake news; enfim, podemos desmerecer o povo em nome da democracia. Ou então desmerecer o resultado eleitoral denominando-o “populista”: eu ganho, é democracia; eu perco, você é populista. Se parece arrogância ou condescendência do vanguardista que não gostou do resultado eleitoral, é porque é mesmo: quem apoia a democracia deveria aceitar, como legítimos, os seus resultados institucionais.
Mas aqui neste comentário quero enfocar o problema das instituições, que até estão em estado lamentável, mas não por essas razões. A razão principal é uma reação auto-imune: essas instituições decidiram não se adaptar às novas exigências do público e, assim, em vez de se atualizarem, resolveram dobrar a aposta e jogar contra esse mesmo público; e, assim, conseguiram acabar de vez com a própria credibilidade.
Um livro que explica bem esse processo de perda de autoridade institucional é o The Revolt of the Public, do Martin Gurri. Ele diz que com a criação das redes sociais, a comunicação se horizontalizou, e as pessoas começaram a ter novas expectativas quanto ao funcionamento das instituições tradicionais como governos, academia e imprensa. As redes tornaram mais simples, ainda, a comunicação sobre os erros dessas instituições: ficou evidente para todos a enorme distância entre a competência real das instituições e a competência ilusória que elas projetavam como parte de sua campanha de legitimação. Gurri afirma que essa distância sempre existiu, e o que mudou foi a percepção do público quanto a isso (p. 175).
Não à toa, boa parte da vanguarda perplexa adora pedir por liturgia, bons modos, boa retórica; e pedem por isso porque desejam o retorno de algo impossível de voltar: a legitimação sacra das instituições por meio do uso da estética do distanciamento esplêndido; as lideranças institucionais de um lado, e o povo obediente do outro.
O rei nunca deveria conversar com a plebe, porque aí a plebe perceberia que ele é só um ser trágico como qualquer outro humano; o rei precisa da estética da liturgia, precisa do distanciamento esplêndido, para que a tese do direito divino dos reis tenha ao menos uma chance. Liturgia e distanciamento são formas fáceis de manter autoridade sem precisar prestar muitas contas. O rei falou, saiu no jornal, cientistas dizem; o que mais você precisa saber? Está perguntando muito, você é fascista ou “negacionista”?
Só que agora o povo comunica-se, troca opinião sem mediação, e vota. E aí, como faz? Novamente, tudo se encaixa: não à toa, boa parte da vanguarda perplexa adora deslocar as decisões para as instituições não representativas da democracia. Mais Ciência! Mais STF! Mais organismos internacionais! Mais censura! É preciso limitar o que dizem! É preciso regular fake news! Melhor tirar essa decisão do povo e do congresso, porque pode não dar o resultado que nós queremos.
A mudança trazida pelas redes sociais não significa que tudo esteja perdido para as instituições tradicionais. Há salvação, ou haveria salvação, se ao menos reconhecessem a natureza real do problema. Teses preguiçosas como “populismo” e “fascismo” precisariam ser abandonadas, e a realidade precisa ser enfrentada: o rei está nu, e o argumento puro de autoridade já não funciona mais. É preciso descer às praças, e tratar o público com toda a transparência.
No caso específico da imprensa, há dois problemas adicionais.
O primeiro é a dominação de uma visão de mundo vanguardista, que tem determinadas expectativas quanto aos rumos da democracia. Com a nova direita no poder, criou-se uma perigosa mistura de insatisfação com histrionismo, o que empurra à militância.
O segundo problema é a falência do modelo de negócio da imprensa. Segundo Andrey Mir, como o faturamento de anúncios caiu muito, diversos veículos passaram a priorizar o faturamento de assinaturas de leitores; só que é difícil cobrar por isso, já que há muito conteúdo gratuito na internet. Além disso, as pessoas “quase sempre já sabem as notícias antes de chegar aos sites de notícias, porque elas começam a sua rotina de mídia diária pelos feeds das mídias sociais” (Postjournalism and the Death of Newspapers, 2020, p. 6).
Os leitores não estão em busca de notícias, mas sim de validação de suas opiniões. O jornalismo adapta-se a isso, definindo uma agenda para a promoção de determinados valores; o que se vende não é mais notícia, mas sim a participação numa causa, e as redações não trabalham mais com fatos, e sim com valores morais (p. 7). Tudo isso conduz ao que Andrey Mir define como pós-jornalismo: a transformação do jornalismo tradicional em “crowdfunded propaganda” (ou seja, agenda política financiada via crowdfunding).
Há vários detalhes interessantes do pós-jornalismo conforme definido pelo Andrey Mir, mas o seu aspecto mais grave é o abandono do padrão ético do jornalismo tradicional (objetividade e imparcialidade), que agora é substituído pelo critério da pureza ideológica (p. 287).
Com isso, torna-se difícil recuperar a autoridade e a legitimidade que o jornalismo teve um dia. Porque me parece evidente que, pela quantidade de informação a que temos acesso, nós nunca precisamos tanto do trabalho de curadoria dedicada e de verificação meticulosa que só o jornalismo tradicional pode empreender. Como resolver isso, eu não sei; mas ao dobrar a aposta, rendendo-se à militância do pós-jornalismo em detrimento dos valores do jornalismo tradicional, há pouca salvação (e, francamente, pouco a ser salvo).