O ódio compulsório da vanguarda mais amor
Juliana Paes, Václav Havel e o totalitarismo dos "democratas"
Em seu ensaio “The power of the powerless”, Václav Havel conta a história de um verdureiro em um país socialista que instala, na frente de sua loja, uma placa escrita “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”. Ele não faz isso porque concorda com a mensagem; ele faz isso simplesmente para ser deixado em paz, para que a turma da censura via bullying (ou, no caso, via delação e prisão) não o persigam. Mas a placa serve também para sinalizar obediência e deferência às autoridades; não se preocupem comigo, que eu sei o meu lugar. E assim não apenas ele, mas também as autoridades podem dormir em paz, sabendo que contam com a submissão de grande parte das pessoas.
Porque a disputa de ideias pode ser vencida de dois jeitos: ou você pratica a retórica no livre-mercado de ideias, ou você coage as pessoas a concordarem com você. O problema atual do progressismo vai um pouco além até: hoje não basta concordar, não basta alinhar a cognição; do “Fora Temer” ao “Bolsonaro Genocida”, não basta apenas colocar a plaquinha, ou o tuíte, diariamente na frente da sua loja (como aliás as empresas do capitalismo woke também estão fazendo); agora é preciso sentir o que eles querem que você sinta. Sinta medo! Sinta raiva! Cadê o seu ódio diário que eu ainda não vi contra o governo? Já são duas da tarde, companheiro!
Ou você odeia como eu odeio, ou eu infernizarei a sua vida. O progressismo atual não quer o seu bem, ele quer a sua obediência, tanto cognitiva quanto emocional.
Hoje é até difícil de acreditar, mas houve um tempo em que a esquerda era a principal defensora da liberdade de expressão. Por defender causas consideradas “antissociais” - a favor do comunismo, contra o alistamento na primeira guerra etc -, a esquerda precisou recorrer à ampla defesa da liberdade de expressão para que suas ideias tivessem chance mínima de prosperar.
Inclusive, um dos casos mais famosos da Suprema Corte dos EUA, o Abrams v. United States (de 1919, e que contém o histórico dissenso em que Oliver Wendell Holmes Jr. defende a importância do livre-mercado de ideias), tratou precisamente da condenação de militantes de esquerda que criticavam a intervenção dos EUA na revolução bolchevique.
Mas, como se sabe, a esquerda esquece; não tem até partido “comunista” no Brasil, mesmo depois de todos os democídios praticados em nome dessa ideologia? Mas enfim: uma vez conquistada a hegemonia das ideias - ao menos a hegemonia entre as classes escolarizadas, e que controlam boas partes das nossas instituições -, a esquerda resolveu segurar a bola, desligar a luz do estádio e, na base da catimba, resolveu restringir a livre-circulação de ideias apenas às ideias que ela julga aceitáveis. Não à toa, vemos essa série de iniciativas de setores progressistas e “democráticos” contra a liberdade de expressão: regulação de “fake news”, regulação de “discurso de ódio”, inquéritos e prisões ilegais, e assim por diante.
Isso não teria ocorrido, claro, se o questionamento à hegemonia progressista não tivesse crescido nos últimos 10 anos. Porque enquanto a democracia encontrava-se no caminho “do Bem”, enquanto as ideias dominantes e as políticas públicas rumavam mais ou menos de acordo com as expectativas escatológicas da vanguarda mais amor, tudo estava certo; mais democracia, por favor! Mais participação social, por favor! Mais amor, por…enfim, você já sabe, ninguém aguenta mais ouvir.
Mas há quanto tempo você não houve a esquerda falar em “participação social”? Era uma de suas grandes bandeiras até recentemente. A premissa básica continua sendo a escatologia do marxismo: a sociedade rumará para algo melhor, e esse algo melhor significa mais igualdade, mais fraternidade, menos exploração, e assim por diante. Só que na falta da revolução, como explicar quando isso não ocorre?
Se não ocorre, é porque o povo não está sendo ouvido de maneira suficiente; é preciso incluir o povo. Porque o progresso (conforme os progressistas entendem) é o Destino, e as massas são, ao menos de maneira simbólica, a razão de existir da esquerda (é a fraternidade da “Grande Marcha”, na expressão de Milan Kundera); então se eu reunir as duas coisas, não tem como dar errado. Se parece uma variação do determinismo histórico marxista, é porque é mesmo: a esquerda não consegue superar o ranço paleomarxista de tentar embutir, nas democracias liberais modernas, uma teleologia que ela simplesmente não contém e não tem como conter by design.
Ih, deu problema: incluímos o povo… e eles votaram no Brexit! Votaram no Trump! E em Bolsonaro! Deu ruim, esquece essa história de participação. Vamos ter de fazer o mesmo movimento que Lenin fez: esqueçam os soviets, esqueçam as massas, agora vamos centralizar as decisões. Mas onde?
Ora, se o problema é o povo, nós precisamos centralizar as decisões nas instâncias onde não há voto: joga para o STF; que eles governem o país! Joguem para os burocratas, os tecnocratas, as agências técnicas, os Senhores das Evidências, as big techs, a imprensa, A Ciência!
E quanto às ideias das pessoas, é só lembrar: quem não concorda com a gente é porque não tem consciência de classe; ou seria porque foi manipulado pelo zap? Já não sei, às vezes me confundo com os séculos. Mas fica tranquilo, que o mercado de ideias a gente controla do jeito de sempre: censura via bullying e, se não se ajoelhar às nossas ideias, chama de fascista que costuma resolver.
O plano é esse; o problema é que algumas pessoas, como a Juliana Paes, às vezes insistem em não aderir. Elas querem manter sua independência, sem vender sua consciência - e seu sentimento - ao ódio bolchehipster em nome de uma (falsa) paz.